Se você leu as mil páginas de “A Revolta de Atlas”, meus parabéns. Mas como dizem os corredores: “o objetivo da primeira maratona é te preparar para a segunda”.
Ayn Rand é considerada um dos pilares do pensamento libertário, apesar de nunca ter se declarado anarquista e ter defendido o estado em algumas ocasiões, sendo particularmente interessada em direitos autorais. Seu sucessor intelectual, Leonard Peikoff, faz questão de dissociar o objetivismo, filosofia de sua mentora, das ideias libertárias. Portanto, sua filosofia não se encaixa na mesma tradição libertária de Murray Rothbard e Hans Hermann Hoppe e você tem todo o direito de chamá-la de liberal. Dissidências à parte, o seu talento literário foi fundamental para disseminar a defesa do livre mercado e do individualismo, além de denunciar a distopia decorrente da opressão estatal. Ainda mais vindo de uma mulher que testemunhou em primeira mão os horrores do comunismo soviético e teve que fugir para os Estados Unidos em busca da tão sonhada liberdade.
Alguns anos antes, Rand escreveu seu outro épico, tão extenso quanto, intitulado “A Nascente”, com uma média de 700 a 750 páginas. Cada livro se sai melhor que o outro em alguns aspectos. Segundo minha opinião de não-especialista, “A Nascente” peca por passar períodos longos demais da história em descrições, sem que nada aconteça. “A Revolta de Atlas” demonstra uma evolução em relação ao ritmo. Ayn Rand se esmera em anunciar eventos grandiosos para o bem e para o mal. Seja a inauguração da Ferrovia John Galt, a sabotagem mundial das minas D’Anconia, o anúncio de uma arma fatal pelo governo, a descoberta de Atlântida e o famoso discurso de Galt, epicentro do livro. Por outro lado, “A Revolta de Atlas” carece de um grande vilão personificado. O inimigo é “o estado”, “o establishment”, mas não tem realmente um rosto humano. O antagonista James Taggart, irmão da protagonista, é covarde demais para ser levado a sério. Isso sem mencionar e os representantes do governo com os quais ele conspira, que chegam a implorar a John Galt por socorro quando a crise se instala.
Aqui no Visão Libertária tem um vídeo sobre sua obra magna, “A Revolta de Atlas”, intitulado: A filosofia da LIBERDADE em A REVOLTA DE ATLAS, o link está na descrição.
Em desenvolvimento de personagens, “A Nascente” se sai melhor. Ayn Rand se dedica especialmente a dois deles: o vilão Ellsworth Toohey e o anti-heroi Gail Wynand, indo até a infância desses dois personagens para fazer entender como eles chegaram onde estão. A morosidade de “A Nascente” pode ser em parte explicada pelo tanto que a autora se dedica a narrar o passado.
Seguem alguns spoilers da trama, mas nada que comprometa a leitura.
O romance é dividido em quatro partes, cada um deles intitulado com o nome de um personagem. O primeiro se dedica a Peter Keating, um rapaz mimado que foi colega na faculdade de arquitetura do protagonista Howard Roark. Após se formar, ele consegue emprego no maior escritório de arquitetura de Nova Iorque. Ele não chega a ser um incompetente, consegue desempenhar as funções básicas de sua profissão. Mas seu principal instrumento para ascender na profissão é sua rede de influências. Peter está longe do talento de Roark, ao qual recorre para vencer um concurso de arquitetura botando apenas o nome no projeto, tal como aquele colega chupim nos trabalhos em grupo na escola. Peter é escanteado na história logo depois dessa primeira parte, servindo apenas de escada para outros personagens. Numa cena emblemática de sua insignificância, ele está esbanjando dinheiro ao pagar bebidas para amigos duvidosos, enquanto pergunta desesperado: “somos amigos, não somos?”.
A segunda parte apresenta o grande vilão da história, o escritor Ellsworth Toohey. Desde a infância Toohey demonstrava suas principais características: sua oratória brilhante e seu falso verniz de frugalidade. Quando criança ninguém ousava afrontá-lo, apesar de sua compleição física frágil, pois demonstrava uma coragem intimidadora quando falava. Conta-se que uma vez participou de um debate defendendo o socialismo e venceu, depois trocou de posição com seu adversário e venceu novamente. Depois de adulto, Toohey se torna colunista de um jornal sensacionalista, instrumento através do qual angaria uma legião de seguidores.
Ellsworth Toohey sempre se apresenta como um humanitário, alardeando suas doações para a caridade. Quando revela suas verdadeiras intenções privadamente, se revela um psicopata faminto de poder. Ele é um exemplo de vilão frio retratado por várias obras de ficção, que se apresenta como uma pessoa irrepreensível, que sabe ganhar a confiança dos que estão ao seu redor por sua fala mansa. O talento para falar também é característico de alguns ditadores da vida real como Genghis Khan, Fidel Castro, Lênin e tantos outros políticos que foram bastante bem-sucedidos em enganar seus eleitores e simpatizantes.
O discurso do sacrifício de Ellsworth é particularmente assustador. Sua frase mais marcante é: “Quem louva o sacrifício quer colher o que é sacrificado. Quem fala sobre sacrifício fala de mestres e escravos, e quer ocupar o lugar do mestre.”
Outro trecho do discurso do sacrifício de Ellsworth é incrivelmente atual:
“A Europa já não foi engolida, e nós não capotamos ao segui-la? Tudo o que eu disse está contido numa única palavra – coletivismo. Esse é o Deus do nosso século. Agirmos juntos. Pensarmos juntos. Sentirmos juntos. Unir, concordar, obedecer, servir, sacrificar. Dividir e conquistar – primeiro. Mas então, unir e comandar.”
Ellsworth é provavelmente o melhor personagem de Ayn Rand, em termos de desenvolvimento. Vil, dissimulado e eloquente, ele é uma metáfora de muitas pessoas reais que angariam poder na política, na mídia e nos negócios.
A terceira parte se dedica a Gail Wynand, dono do jornal onde Ellsworth Toohey escreve sua coluna. Gail é uma espécie de personagem que se redime, e sua história é apresentada desde a infância. Após vencer uma briga, mesmo sendo menor que seus adversários, se torna líder de uma gangue. Mas era um líder de gangue diferente, que ganha ainda mais respeito de seus liderados por mandar roubar livros e passar tempo na biblioteca. Depois de crescer, seu objetivo passa a ser corromper pessoas, usando sua fortuna apenas como um instrumento para isso. O que o divertia era contratar um socialista para defender o capitalismo, pagar para um vegano comer carne, e assim por diante. Ele vivia querendo saber por qual preço as pessoas renunciariam a suas convicções. Uma reviravolta ocorre em sua vida quando ele conhece pela primeira vez um homem incorruptível, o protagonista Howard Roark. Gail fica tão fascinado por Roark que passa a defendê-lo com todos os seus recursos do linchamento público depois da acusação de um crime. E faz isso às custas de perder leitores de seus jornais e até mesmo de enfrentar um motim dentro da sede da empresa.
A quarta parte se intitula Howard Roark, apesar de ele ser o protagonista e já ter sido apresentado ao longo do livro. Como já dissemos, Howard é um personagem incorruptível, que prefere a miséria a abrir mão de seus princípios. De fato, ele passa uma parte do livro na miséria, chegando a não conseguir trabalhos como arquiteto e sendo obrigado a trabalhar como operário numa mineradora. Ele também não se importa com dinheiro, tendo feito dois trabalhos para Peter Keating sem cobrar nada. A epítome do livro ocorre quando Howard comete um ato supostamente criminoso, o qual é melhor não revelar, pois é necessário preservar algum motivo para ler o livro. Em seu julgamento, Howard faz um discurso em defesa da autonomia do homem que é oposto ao discurso do sacrifício de Ellsworth:
“Nenhum homem pode viver para outro. Ele não pode compartilhar seu espírito assim como não pode compartilhar seu corpo. Mas o incompetente usou o altruísmo como arma de exploração e inverteu a base dos princípios morais da humanidade. Os homens aprenderam todos os preceitos que destroem o criador. Os homens aprenderam a dependência como uma virtude. O homem que tenta viver para os outros é um dependente. Ele é um parasita por motivação e transforma em parasitas aqueles a quem serve.”
Tanto em “A Nascente” quanto “A Revolta de Atlas” Ayn Rand mantém a principal característica de seus principais personagens: a grandiloquência, a capacidade fazer grandes discursos, seja no meio de uma festa, num tribunal ou num quarto fechado. Os críticos de seus romances dizem que seus personagens são mal desenvolvidos e não passam de porta-vozes do pensamento da autora. De fato, quando Ellsworth Toohey foi sincero em seu discurso do sacrifício, ele parecia reproduzir o pensamento da própria Ayn Rand, que era ateia e rechaçava a vida de renúncia pregada pelo cristianismo.
Como já dito, a leitura de “A Nascente” pode ser cansativa pela lenta progressão dos acontecimentos. Mas ao saber que em algum momento você vai se deparar com os épicos discursos dos principais personagens, você vai se motivar da mesma forma que assistiria a um filme devido a um excelente trailer. E eu não revelei de qual crime Howard Roark foi acusado para ser julgado, isso fica para você saber caso tenha interesse em ler o livro.
Embora ainda estejam aquém do discurso da não-contradição de John Galt em “A Revolta de Atlas”, a grandiloquência de Ayn Rand já se revela nesse romance, e fornece ferramentas preciosas para a divulgação das ideias capitalistas e anticoletivistas. Pois como o próprio Ellsworth Toohey ensina, conquistar mentes muitas vezes é uma questão de saber escolher as palavras, não só para convencer, mas também para comover.
Livro "A Nascente", de Ayn Rand.
CliffsNotes, um excelente site de análise literária: https://www.cliffsnotes.com/literature/f/the-fountainhead/book-summary
Visão Libertária - A filosofia da LIBERDADE em A REVOLTA DE ATLAS:
https://youtu.be/1R0mweI_vvw