Liberdade existe?

O conceito de liberdade está no centro das disputas entre diversas correntes políticas contemporâneas. No entanto, será que existe alguma evidência empírica sobre a nossa capacidade de sermos verdadeiramente livres?

Considere o polêmico PL2630, o infame "PL das fake-news": enquanto seus defensores afirmam que será uma ferramenta vital para combater a desinformação, seus críticos o veem como um ataque direto à liberdade de expressão.
Agora considere sobre a questão da imigração: alguns argumentam que abrir as fronteiras para pessoas potencialmente problemáticas é uma ideia terrível, enquanto outros defendem a liberdade inalienável do ser humano de buscar lugares que ofereçam melhores condições de vida.
Mais uma: considere até que ponto a decisão de tomar ou não uma determinada substância injetável para combater a propagação de um micróbio deve ser baseada na liberdade individual?
E por ai vai: Indivíduos têm o direito de possuir armas de fogo? Ou de se casar com pessoas do mesmo sexo? E quanto a ofender o outro?

Independentemente da visão político-ideológica, as principais discussões políticas relevantes da atualidade giram em torno da liberdade. De comunistas a libertários, passando por liberais, sociais-democratas ou mesmo políticos genéricos de centro, corporativistas, burocratas e isentões, todos falam sobre liberdade ou falam de coisas que giram em torno dela.
Em alguma medida, a identificação no espectro político reflete em que grau você defende ou ataca a liberdade individual, e se a considera como um valor fundamental e inegociável ou apenas uma concessão dada por alguns iluminados, que inclusive pode ser retirada quando lhes for conveniente.

A filosofia libertária de Rothbard é um discurso sobre indivíduos. Assim, a liberdade refere-se à liberdade individual. Em outras palavras, todo indivíduo pode agir e existir no mundo da maneira que melhor lhe convir, desde que em suas ações não exerça violência sobre os demais, como preconizado pelo princípio de não agressão, o PNA. Com efeito, um indivíduo é livre quando suas ações não resultam da violência ou ameaça de violência exercida por algum outro. Essa noção de liberdade tem um caráter puramente instrumental e visa ser o fundamento legal de sociedades verdadeiramente pacíficas. Na verdade, todas as grandes civilizações foram construídas tendo a propriedade privada como fundamento.

Uma vez que reconhecemos a importância do conceito de liberdade em nossa vida, podemos agora tentar entendê-lo de um outro ponto de vista, talvez mais fundamental. Em vez de nos concentrarmos na noção libertária, que trata da não-violência na interação entre indivíduos, neste artigo discutiremos a possibilidade de haver liberdade intrínseca nos seres humanos, referida como livre-arbítrio. A maioria de nós tem o primeiro contato com esse conceito por meio de Santo Agostinho.
De maneira resumida, a noção cristã de livre-arbítrio afirma que existe no ser humano a capacidade intrínseca de escolher seus caminhos, ou seja, decidir entre o pecado e a virtude, de servir a Deus ou não. Em outras palavras, embora Deus seja onipotente e onipresente, ele não nos trata como meras marionetes. Essa noção captura os elementos essenciais da questão.

De maneira geral, a noção de livre-arbítrio refere-se à possibilidade dos seres humanos realizarem escolhas que não são definidas a priori, assim também afasta-se a ideia de predestinação, de destino manifesto ou de qualquer ideia que pressuponha um futuro determinístico.
Nesse ponto, fica claro que ser livre é inteiramente possível, embora construir uma sociedade libertária, um ancapistão ou uma sociedade de leis privadas, continua sendo algo extremamente desafiador. No entanto, não existe nenhuma restrição lógica ou lei da física que proíba isso de acontecer. Contudo, quando nos perguntamos se podemos ser livres no sentido de ter livre-arbítrio, o problema torna-se muito, mas muito mais complicado.

Primeiro, assumir que tal natureza humana existe e que tem impacto sobre a realidade material implicaria assumir também que o universo físico comporta indeterminismo, ou seja, um estado onde a causalidade dos eventos não está completamente fixa. Como observado por Laplace, isso descartaria a física clássica ou Newtoniana como uma descrição fundamental da natureza. De acordo com as leis de Newton, dada uma configuração inicial para um sistema de partículas, o seu futuro está completamente determinado. Laplace ilustra tal problemática ao afirmar que sob a perspectiva de um intelecto hipotético que soubesse a configuração precisa do universo em qualquer instante de tempo, passado e futuro seriam completamente determinados, de modo que qualquer incerteza ou indeterminação simplesmente desapareceriam. Nessa perspectiva, o nosso suposto livre-arbítrio seria apenas uma ilusão, ou seja, um reflexo da nossa ignorância em relação aos parâmetros por trás de nossas ações. Apesar de ótimo matemático, Laplace carregava consigo uma visão mecanicista de mundo, mas a ação humana não obedece a esse tipo de matemática.

Hoje sabemos que o universo não é inteiramente governado pelas leis da física de Newton. Em escalas microscópicas, a mecânica quântica toma seu lugar, enquanto em altas energias ou em grandes escalas, a relatividade de Einstein entra em jogo. A teoria de Einstein não muda as conclusões tiradas por Laplace; pelo contrário, na relatividade, para cada observador, só existe um único passado e futuro possível, além de que espaço e tempo também se misturam e são tratados de maneira simétrica. A mecânica quântica, por sua vez, fornece uma possibilidade interessante e única. De acordo com essa teoria, ao descrevermos o movimento de partículas elementares como o elétron, tudo o que podemos prever são as probabilidades calculadas a partir da chamada "função de onda". Mesmo de posse de toda informação possível sobre o elétron em um instante de tempo, tudo o que pode ser dito sobre seu futuro é a chance de encontrá-lo aqui ou ali. A conclusão é que a energia ou posição do elétron são indeterminadas, como ilustrado no famoso princípio da incerteza de Heisenberg.

Em resumo, considerando uma relação entre as teorias da física atual e a ação humana, a única teoria que não descarta a priori a possibilidade de livre-arbítrio seria a mecânica quântica. Então há aqui duas possibilidades lógicas:
Na primeira, a mecânica quântica não é uma teoria fundamental, como argumentou Einstein em seu famoso "paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen" e na frase "Deus não joga dados". Nesse cenário, existiria uma teoria mais fundamental que, quando descoberta, permitiria calcular precisamente o movimento de partículas como o elétron, em vez de somente probabilidades. Em outro cenário, a natureza de fato comporta estados indeterminados, de modo que nossa consciência e, portanto, a liberdade de escolha, poderiam ser explicadas por fenômenos quânticos em nosso cérebro. Afinal, qual das duas alternativas está correta? A resposta é: ainda não se sabe. Pode inclusive não haver nenhuma relação entre o comportamento de teorias físicas com o comportamento humano. Nesse ponto, podemos discutir apenas possibilidades lógicas e evidências a favor de um ponto ou outro.

Um argumento a favor do indeterminismo é o celebrado teorema de Bell. Em poucas palavras, Bell mostrou que o efeito do emaranhamento quântico entre partículas pode ser medido experimentalmente, o que de fato foi feito nas décadas seguintes, verificando que uma teoria como a que Einstein queria não é possível de existir. Por outro lado, esse resultado não descarta a possibilidade de outras teorias complementares à mecânica quântica, nem mesmo interpretações onde o indeterminismo não exista. Além disso, não há ainda nenhum modelo quântico satisfatório para a cognição humana, tampouco medições desses supostos efeitos que explicariam o livre-arbítrio.

Concluímos, assim, que a resposta para uma pergunta que pode parecer ingênua à primeira vista, depende na verdade da solução de problemas que estão na fronteira do conhecimento científico. Desse modo, qualquer solução para esse quebra-cabeça deve fornecer evidências empiricamente testáveis, transformando assim um problema metafísico em desafio tecnológico. Seria realmente incrível e genial!

Agora, imagine um cenário talvez mais catastrófico, onde evidências robustas contra a realidade do indeterminismo e do livre-arbítrio foram obtidas. Nesse caso, a liberdade que tanto valorizamos seria apenas uma simples ilusão? Seríamos então como non-player characteres, as famosas NPCs? Programados para se perguntar se somos NPCs? Qual seria o impacto disso sobre o libertarianismo, as religiões ou as leis? Como poderíamos atribuir culpa a alguém que cometeu algum crime se sua história já estava predefinida?
Algumas obras e filmes retratam esse assunto de alguma forma. Sobre a ideia de pré-crime, podemos citar “Minority Report” de Philip Dick, ou “Capitão América 2 – O Soldado Invernal” e mesmo 1984 de Orwell com seu “crime de pensamento”.

Para finalizar, destacamos que a busca pela verdade sobre o livre-arbítrio não é apenas uma empreitada da ciência moderna. Filósofos e teólogos, desde épocas remotas, já travavam debates homéricos em torno dessa questão, refletindo sobre as complexidades da vontade, da moralidade e da existência humana. O primeiro grande debate foi entre Santo Agostinho e Pelágio, mas houve outros como calvinismo versus arminianismo. Apesar da diferença metodológica entre a teologia cristã, que usa lógica, e a ciência moderna que usa experimentação, parece que aqui a questão central é a mesma, se entendermos que “predestinação” requer que haja alguma restrição no livre-arbítrio do indivíduo.
Para compreender melhor o assunto do livre-arbítrio, seria necessário tratar de uma “ontologia da liberdade”. Justamente o que Luigi Pareyson tenta em sua obra homônima.

Então cabe a pergunta: Ao ler este artigo ou assistir a este vídeo, você está exercendo seu livre-arbítrio ou simplesmente foi programado para isso? Do que você come e veste, a como você trata as pessoas a sua volta, tudo isso seria pré-determinado? Ou haveria espaço para escolha entre alternativas ao longo do tempo?
O pessoal da preguiça e da procrastinação adoraria colocar a culpa num determinismo. E, falando em determinismo, infelizmente lembrei do determinismo histórico de Marx. Um lixo completo.
Vamos mudar de assunto e, para assumir o protagonismo e dar um melhor destino à sua vida, veja agora o vídeo: “A geopolítica do indivíduo”, link logo abaixo na descrição.

Referências:

A geopolítica do indivíduo
https://www.youtube.com/watch?v=wD9SKaw_6Cs

1. Do we have free-will? https://www.ingentaconnect.com/content/imp/jcs/1999/00000006/F0020008/966
2. Moral responsability and free-will: https://doi.org/10.1016/j.concog.2014.08.012
3. The Open Past in an Indeterministic Physics: https://doi.org/10.1007/s10701-022-00645-y
4. Relativity of indeterminism: https://doi.org/10.3390/e23101326
5. História do debate calvinista–arminiano: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_debate_calvinista%E2%80%93arminiano
6. Quantum indeterminacy: https://doi.org/10.1111/phc3.12731
7. Against quantum indeterminacy: https://doi.org/10.1002/tht3.250