Enquanto você escolhe o que assistir no seu final de semana, um grupo de artistas e burocratas decide como taxar sua escolha. A liberdade do seu controle remoto está sob ataque, e o seu bolso é o alvo principal.
A liberdade individual sofre ataques constantes e multifacetados. Muitas vezes, eles vêm disfarçados de boas intenções e de nobres causas. A mais recente ofensiva se veste com o manto da "soberania nacional" e da "proteção à cultura". O debate, que esquenta e esfria nos corredores de Brasília, gira em torno da regulação dos serviços de streaming, um tema que une a classe artística e a classe política em um objetivo comum. O fato que serve de gatilho para nossa análise é a contínua e forte pressão para aprovar o Projeto de Lei 8889/2017.
Este movimento não é um ato isolado. Ele representa a cobiça de um forte grupo de interesse para regulamentar e, claro, taxar um dos poucos setores que cresceram e inovaram com base na livre escolha do consumidor. O projeto, se aprovado, instituirá uma nova forma de tributação sobre as plataformas de vídeo sob demanda, como Netflix, Prime Video, Max, e outras. A proposta central é a criação da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) sobre a receita bruta dessas empresas no país. As alíquotas progressivas podem chegar a até 4%. Em suma, estão criando mais um imposto sobre um serviço popular.
Os defensores da medida, incluindo associações de produtores e figuras conhecidas do setor audiovisual, argumentam que a regulação é necessária para criar "condições de igualdade" com a TV a cabo, que já é taxada. Afirmam que é uma questão de soberania, garantindo que o conteúdo nacional tenha espaço e financiamento. O discurso é sedutor. Ele evoca um sentimento de patriotismo e a ideia de que, sem a mão visível do estado, a cultura local seria engolida pelos gigantes estrangeiros. Mas, como libertários, temos o dever de olhar para além da cortina de fumaça e analisar o que essa proposta realmente significa. Não se trata de cultura; trata-se de controle, privilégio e, acima de tudo, da expansão do poder estatal sobre as escolhas individuais.
O primeiro e mais óbvio ponto a ser desmistificado é sobre quem realmente arcará com os custos dessa nova contribuição. Os defensores da proposta vendem a ideia de que as "grandes empresas de tecnologia" finalmente "pagarão sua parte justa". Esta é uma falácia econômica primária. Corporações não pagam impostos, elas os coletam. Qualquer custo adicional imposto a uma empresa, seja ele um imposto sobre o lucro, sobre a receita ou uma taxa regulatória, é inevitavelmente repassado em alguma medida aos seus preços.
O mercado de streaming, apesar de dominado por grandes nomes, é altamente competitivo. Dados reais mostram a sensibilidade do consumidor. O cancelamento de assinaturas, ou "churn", é uma métrica vital para essas empresas. Um aumento de poucos reais na mensalidade pode levar a uma migração em massa para um concorrente ou simplesmente ao abandono do serviço. As próprias plataformas sabem disso e medem cada passo.
Portanto, a Condecine de até 4% não sairá do lucro dos acionistas em um país distante. Ela será embutida diretamente no valor da sua assinatura mensal. O artista que defende a medida não pagará por isso. O burocrata que irá gerenciar os fundos não pagará por isso. Quem pagará será o cidadão comum, o trabalhador que busca algumas horas de entretenimento após um longo dia de trabalho. A "taxa do streaming" é, na prática, um imposto sobre o entretenimento. É mais um exemplo de como o estado penaliza o consumo e a atividade privada para sustentar seus próprios projetos de poder e os de seus grupos de interesse aliados.
O segundo argumento central dos reguladores é a defesa da "soberania" e da "cultura nacional". Este é um dos discursos mais perigosos utilizados por estatistas. Ele presume que a cultura é uma entidade frágil que precisa da tutela de burocratas para sobreviver. Presume que os indivíduos não são capazes de escolher e valorizar o conteúdo que lhes interessa, necessitando de um guia estatal para lhes dizer o que é "culturalmente relevante".
A cultura é um organismo vivo, dinâmico e espontâneo. Ela nasce da interação voluntária entre criadores e consumidores. Um filme, uma série ou uma música se torna relevante quando conquista o público por seus próprios méritos, não porque uma lei obriga sua exibição. O Brasil já produziu sucessos globais que não dependeram de cotas ou de fundos estatais para alcançar milhões de telas. O sucesso internacional de produções como "Sintonia" ou o fenômeno de criadores de conteúdo independentes no YouTube, hoje, provam que a qualidade e a relevância não são monopólios do estado.
O que a regulação propõe não é a proteção da cultura, mas a criação de uma "cultura oficial". Ao criar um fundo bilionário abastecido por impostos e gerido por uma agência estatal (a Ancine), o governo se torna o grande curador cultural. Ele decidirá quais projetos merecem financiamento, quais roteiros estão alinhados com a "visão" do momento e quais produtores são "amigos do rei". Isso abre um precedente gigantesco para o clientelismo e a produção de conteúdo que serve mais a uma agenda ideológica do que à arte. A verdadeira soberania cultural reside na liberdade do indivíduo de produzir e consumir o que desejar.
Se a regulação não é primariamente sobre o consumidor nem sobre a cultura, sobre o que ela é? A resposta é simples: reserva de mercado. O que vemos em ação é o mais clássico exemplo de "rent-seeking", ou busca por renda. Um grupo de interesse bem organizado utiliza a força do estado para garantir uma fatia de um mercado lucrativo, eliminando a necessidade de competir em pé de igualdade.
Os produtores e artistas estabelecidos, que formam a espinha dorsal desse lobby, enxergam no streaming uma concorrência formidável. Em um mercado livre, eles precisariam criar obras que agradassem ao público o suficiente para que este, voluntariamente, decidisse pagar por elas. Com a regulação, o caminho é mais curto e seguro. Por que competir pela atenção e pelo dinheiro do espectador se é possível simplesmente forçar o espectador a financiar seus projetos através de impostos, quer ele assista ou não?
O PL 8889/2017 não apenas cria o imposto, mas também propõe cotas de conteúdo nacional nos catálogos. Isso significa que as plataformas serão obrigadas a exibir um percentual de produções locais, independentemente de sua qualidade ou da demanda do público. Para o consumidor, isso significa uma restrição à sua liberdade de escolha. O catálogo deixará de ser moldado pela busca em agradar clientes e passará a ser ditado por uma canetada de Brasília. Para os produtores beneficiados, é o paraíso: a exibição está garantida por lei, não pela competência. É a vitória da coerção sobre a cooperação voluntária.
Vamos supor, apenas para fins de argumento, que a intenção por trás da proposta fosse genuinamente boa. Ainda assim, ela estaria fadada ao fracasso, pois parte de uma premissa fundamentalmente equivocada: a de que o estado é um alocador eficiente de recursos. A história da gestão estatal em qualquer setor, e especialmente na cultura, é um desfile de ineficiência e desperdício.
O dinheiro arrecadado pela Condecine irá para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), gerido pela Ancine. Esta agência já possui um histórico controverso, com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) apontando graves falhas de gestão e controle na prestação de contas de projetos financiados. Aumentar massivamente o volume de dinheiro sob sua gestão é apenas ampliar o potencial para os mesmos problemas.
Os critérios para a liberação de verbas serão técnicos ou políticos? Quem garantirá que os projetos escolhidos serão aqueles com maior potencial artístico, e não os dos produtores com melhores contatos no governo? A tendência natural de qualquer órgão burocrático é a de se perpetuar e expandir seu poder, criando teias de dependência que sufocam a inovação. O resultado provável será uma avalanche de produções de qualidade duvidosa, feitas para cumprir tabela e agradar aos burocratas, enquanto os verdadeiros talentos continuarão a lutar no mercado real.
A proposta de regulação do streaming é um microcosmo perfeito do embate entre duas visões de mundo. De um lado, a visão estatista, que acredita na necessidade de um poder central para guiar, proteger e controlar a sociedade. Nessa visão, os indivíduos são massas a serem tuteladas, e os mercados são falhos, necessitando de rédeas curtas. Os argumentos da "soberania" e da "proteção cultural" são as ferramentas para justificar essa intervenção.
Do outro lado, a visão libertária, que se baseia na primazia do indivíduo e em sua capacidade de fazer escolhas. Nesta visão, a liberdade não é uma ameaça, mas a fonte de toda a prosperidade e inovação. O mercado livre é o sistema mais eficiente e justo para alocar recursos, pois se baseia em milhões de decisões voluntárias diárias. A competição, e não a regulação, é o que protege o consumidor.
A "taxa do streaming" não é uma contribuição para a cultura. É um pedágio imposto pelo estado e seus grupos de interesse sobre a sua liberdade de escolha. É a tentativa de um cartel de se proteger da concorrência, socializando seus custos e privatizando seus lucros. Cabe a cada um de nós resistir a essa usurpação e defender o único princípio que garante uma cultura verdadeiramente rica e diversa: a liberdade total
https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-detecta-irregularidades-na-prestacao-de-contas-de-producoes-patrocinadas-pela-ancine