O período autoritário do famigerado micróbio chinês chegou ao ocidente destacando a necessidade de qualquer defensor da liberdade atentar-se ao fenômeno do cientificismo, que transforma a ciência em algo semelhante a uma religião.
A ciência representa um dos triunfos mais notáveis e exitosos da história humana. Como um método sistemático de investigação, ela se dedica à compreensão do mundo natural por meio da observação, experimentação e análise crítica. Através da ciência, adquirimos uma visão mais aprofundada e precisa da realidade, desde o nível subatômico até o cosmológico. Além disso, a ciência desempenha um papel crucial como propulsora da inovação e tecnologia, sendo a matriz de muitos avanços que moldaram profundamente a sociedade.
Em contraste com o rigor e a racionalidade defendidos pelo método científico, temos testemunhado nos últimos anos uma invasão da irracionalidade nesse campo. O exemplo recente mais notável é o do micróbio chinês, onde diversas ações injustificadas de controle social, como os "lockdowns" implementados por China e Austrália, foram justificadas com base em interpretações no mínimo questionáveis da ciência. Isso, no entanto, não deve ser entendido como um fenômeno recente. Na virada do século 19 até a primeira metade do século 20, a teoria da evolução de Darwin foi amplamente utilizada como justificativa para teorias racistas e propostas eugenistas. Esses desvios do entendimento científico para objetivos ideológicos ou políticos ressaltam a necessidade de se manter uma abordagem equilibrada e crítica à aplicação da ciência na sociedade. Enquanto a ciência fornece uma base sólida para a tomada de decisões, é crucial evitar distorções que possam comprometer a integridade e os benefícios genuínos que a ciência pode oferecer à humanidade.
Este artigo propõe uma breve introdução ao cientificismo. Será uma perspectiva que representa uma das principais distorções no entendimento científico contemporâneo. Em síntese, o cientificismo refere-se a uma abordagem excessivamente confiante; uma crença desmedida na capacidade da ciência, e do método científico, para compreender e explicar todos os fenômenos da vida. É crucial distinguir entre a prática da ciência em si e o cientificismo, uma atitude filosófica e ideológica que ultrapassa os limites da investigação científica. Neste contexto, explorarei as principais implicações dessa abordagem, buscando identificar potenciais soluções e desafios em aberto.
Para começar, vamos relembrar brevemente em que consiste o método cientifico. Essa abordagem sistemática é o alicerce do empreendimento científico, orientando a compreensão do mundo natural através de uma sequência estruturada de observação, experimentação e análise crítica. O método científico se inicia com a observação de fenômenos ou padrões no mundo natural, seguida pela formulação de hipóteses que explicam essas observações. Essas hipóteses são então testadas através de experimentos controlados, onde variáveis são manipuladas para avaliar seu impacto nos resultados. Os dados coletados são analisados estatisticamente para determinar se há uma correlação significativa entre as variáveis testadas. Com base nessa análise, visa-se chegar a conclusões que contribuem para o conhecimento existente.
A primeira indagação que naturalmente se apresenta é a validade dessa metodologia. Uma justificação formal para a validade do método científico não é uma tarefa trivial, e foge ao escopo deste artigo. No entanto, podemos assumir a validade dessa abordagem com base no argumento simples de que a ciência demonstra resultados eficazes. Podemos ilustrar essa perspectiva com uma analogia: não é imperativo refutar formalmente a teoria econômica Marxista, como fez Mises, para concluir que o comunismo não funciona. Em vez disso, essa conclusão pode ser inferida a partir de sua ineficácia em experiências socialistas, como na extinta União Soviética.
Ao assumirmos a validade do método científico, surge naturalmente uma outra indagação: qual é o alcance de aplicação dessa metodologia? É precisamente neste ponto que ciência e cientificismo tomam direções distintas. Por um lado, as conclusões de um experimento científico devem ser expressas em afirmações precisas e limitadas. Tomemos como exemplo o teste de um remédio injetável para um micróbio hipotético, chamado GRIPINHA-23. Uma possível conclusão seria formulada como: "o antídoto 'Curou-Uma-Vaca' mostrou-se eficaz na prevenção de casos respiratórios graves em pacientes idosos, sem nenhuma comorbidade grave observada". O cientificismo, por sua vez, apresenta uma de suas principais características ao perverter conclusões científicas. Um exemplo disso seria a extrapolação da eficácia deste antídoto hipotético para uma ampla variedade de situações, ou grupos de pacientes, não abrangidos pelos dados disponíveis, como, por exemplo, ao defender sua aplicação em crianças. Em outras palavras, conclusões científicas são sempre circunscritas às situações controladas através das quais foram obtidas. Decorre, portanto, que a ciência, enquanto instrumento essencial para a aquisição de conhecimento, apresenta limitações inerentes, uma vez que nem todos os fenômenos podem ser submetidos a testes em condições controladas.
Como antecipado, o cientificismo caracteriza-se pela perversão do discurso cientifico ao atribuir uma confiança excessiva, e muitas vezes dogmática, na capacidade exclusiva da ciência e do método científico para entender e explicar todos os fenômenos do mundo. Essa perspectiva tende a desconsiderar, ou minimizar, a validade de outras formas de conhecimento, como a filosofia, a religião, a ética e as humanidades, sugerindo que a ciência é a única fonte confiável de conhecimento verdadeiro. Mais do que isso, a seguir argumenta-se que, em certos aspectos, pode ser equiparada a uma "religião da ciência".
Assim como nas religiões tradicionais, o cientificismo pode envolver uma confiança profunda, e muitas vezes inquestionável, na capacidade que a ciência teria em fornecer respostas abrangentes para todas as questões, assumindo uma forma de "fé" na metodologia científica. O uso da expressão "estudos comprovam", em propagandas dos mais diversos tipos de produtos, ilustra bem esse ponto. Além disso, por sua essência, o cientificismo é dogmático, onde certos princípios científicos são aceitos sem questionamento, assemelhando-se à adesão a dogmas religiosos. De maneira semelhante a algumas formas de religião, o cientificismo pode ser propenso ao reducionismo, buscando explicar fenômenos complexos de maneira simplificada e exclusivamente por meio de leis científicas, ignorando nuances e complexidades. Também, em alguns casos, ele pode adotar uma posição exclusiva em relação à verdade, desconsiderando outras formas de conhecimento e interpretação do mundo. E por fim, mas não menos importante, existe a figura do "infiel", que na religião da ciência é chamado de "negacionista".
Os problemas decorrentes da adoção de uma postura religiosa em relação à ciência são diversos. Em primeiro lugar, a ciência é um deus que falha. Como discutido anteriormente, a metodologia científica tem suas limitações inerentes. Além disso, a ciência é conduzida por seres humanos, e suas descobertas são comunicadas por meio de jornalistas e divulgadores científicos, todos sujeitos a falhas e, por vezes, desonestidade. Exemplos de desonestidade científica são abundantes. Para ilustrar a extensão desse problema, de acordo com a Nature, apenas no ano de 2023, mais de 10 mil artigos científicos foram retirados de circulação, estabelecendo um recorde alarmante. Isso ressalta que a "ciência" em que se acredita pode, no final das contas, não ser verdadeiramente ciência. Além disso, mesmo quando avanços científicos legítimos são alcançados de maneira honesta e precisa, a divulgação desses avanços, e, portanto, a informação que chega àqueles sem conhecimento técnico específico, pode ser distorcida. Um exemplo recente ilustra isso claramente. No ano passado, um grupo de físicos dos EUA simulou certos aspectos da dinâmica de buracos de minhoca em um processador quântico. No entanto, a outrora renomada Quanta Magazine divulgou que físicos haviam criado um buraco de minhoca usando um computador quântico. Uma diferença significativa, não é mesmo? Portanto, a menos que se possuam conhecimentos aprofundados em todas as áreas da ciência, desde neurociência até física quântica e virologia, além do tempo e recursos para reproduzir todas as pesquisas publicadas, é prudente adotar uma postura cética em relação ao conhecimento científico.
O primeiro motivo pelo qual os libertários não apenas devem evitar, mas também combater o cientificismo, reside na esfera prática e imediata: as conclusões da ciência têm um impacto direto nas políticas públicas, ou seja, nas decisões dos políticos que afetam os indivíduos. Com base em interpretações questionáveis, políticos decidiram restringir a liberdade individual sob o pretexto de combater a propagação de um determinado micróbio advindo da China. E isso irá ocorrer novamente, cedo ou tarde; basta observar o crescente pânico em torno das mudanças climáticas.
Outro motivo, mais sutil, está relacionado a uma possível solução para esse problema. Dentro da comunidade científica, especialmente no âmbito das ciências físicas e matemáticas, o cientificismo não é uma postura popular e amplamente aceita. Pelo contrário, nos últimos anos, tem-se observado um crescente ceticismo em relação à ciência em si, por parte dos próprios cientistas. Essa tendência pode ser atribuída, em grande parte, à ascensão da descentralização no conhecimento científico, marcando o declínio do monopólio das grandes editoras sobre as publicações científicas. Nesse contexto, muitos cientistas de diversas áreas têm se envolvido ativamente em iniciativas de divulgação científica de alta qualidade, fomentando um diálogo mais dinâmico e efetivo. Um exemplo notável é o do físico libertário australiano Peter Rohde, que regularmente compartilha suas reflexões sobre o impacto das tecnologias quânticas no mundo por meio de seu blog. Portanto, a solução a longo prazo para essa questão parece estar nas mãos de pessoas que têm não apenas um interesse genuíno em questões científicas, mas que também valorizam a liberdade e a descentralização como princípios orientadores.
1. More than 10,000 research papers were retracted in 2023 — a new record: https://www.nature.com/articles/d41586-023-03974-8
2. Physicists Create a Holographic Wormhole Using a Quantum Computer: https://www.quantamagazine.org/physicists-create-a-wormhole-using-a-quantum-computer-20221130/
3. Blog do fisico libertario Peter Rohde: https://peterrohde.org/