Parece que a festa do pronome neutro acabou. Para a alegria de todos, e para tristeza de todes, Lula sanciona lei que proíbe linguagem neutra em órgãos oficiais do governo. Será que a militância vai acusar Lula de homofóbico, ou ele pode tudo?
Há quem diga que o Brasil parece um episódio de South Park, pois certas coisas que acontecem aqui nessa terra tão linda quanto desgraçada, não fazem o menor sentido. Se por um lado Lula está agindo exatamente como esperado, quebrando estatais, falindo a economia e falando um monte de besteiras, por outro, no que tange às pautas culturais e ambientais, ele caminha na contramão do que a esquerda defende, ou ao menos diz defender. Pois bem: a cena do dia é Lula sancionando uma lei que proíbe linguagem neutra nos órgãos públicos. Sim, isso mesmo: aquele mesmo lado político que transformou “todes”, “elu”, “amigue”, “menine” e outras diarréias linguísticas em um símbolo forçado de inclusão, agora se vê diante de um veto presidencial ao uso dessa linguagem que, há pouquíssimo tempo, juravam ser uma pauta civilizatória.
O projeto sancionado por Lula, estabelece que a administração pública deve seguir a norma culta da língua portuguesa e não pode empregar linguagem neutra em documentos, comunicados e atos oficiais. Apesar de parecer algo não muito importante em um país dominado pelo crime organizado, sufocado por impostos e oprimido pela censura, essa atitude do molusco é sim significativa. Não no sentido prático, mas em seu sentido simbólico: é o último prego no caixão da cultura woke no Brasil. O derradeiro capítulo de uma história que começou com ares de revolução de costumes, caminhou triunfante por universidades, redações, ONGs e repartições públicas, vociferou, perseguiu, calou, patrulhou (e como patrulhou!), para agora terminar com Lula, Lula, proibindo oficialmente aquilo que era quase sagrado ao progressismo.
É aqui que mora o detalhe mais saboroso de toda a situação. Porque se existe uma coisa que o establishment progressista não faz, é cobrar coerência ou se opor aos seus políticos de estimação. Quando alguém de fora critica, eles se organizam em círculos, ajustam os óculos imaginários da superioridade moral e começam a atacar em massa quem criticou. Mas quando alguém de dentro dá um tapa na mesa, ah, aí é diferente. Aí começam as manobras acrobáticas, os contorcionismos argumentativos, a liturgia da limpeza de imagem. Afinal, quem ousaria acusar Lula de ser “réu da causa” por acabar com a brincadeira do “todes”? Quem, em sã consciência, chamaria Lula de transfóbico, conservador, reacionário ou coisa do tipo? Pois é. Ninguém. Ao menos ninguém de esquerda. A esquerda simplesmente não suporta lacração quando ela deixa de ser útil — e agora, com o atual clima político e o desgaste acumulado, ela deixou.
E se você observar o fenômeno com um pouco de distância, tudo se encaixa com uma harmonia quase matemática. A linguagem neutra não nasceu como demanda espontânea, como fruto do uso vivo, livre e orgânico da língua — como deveria ser. Não: ela nasceu de assembleia estudantil, de comitê identitário, de grupinhos militantes nas redes sociais. Nasceu de uma tentativa de engenharia social pela gramática, como se fosse possível redesenhar o tecido cultural apenas decretando uma novilíngua. Só que a língua, essa coisa rebeldíssima, não pede permissão para mudar. Ela se transforma porque milhões de pessoas a usam, trocam, moldam, adaptam, reescrevem. Ela não segue ordem, ela segue uso. Não é à toa que os dialetos surgem sem aviso, que as gírias explodem do nada, que expressões aparecem nos confins da terra e viram moda nacional. A língua é, por excelência, um fenômeno espontâneo, anarcocapitalista por natureza: nasce da interação livre entre indivíduos, e não por ordem de quem quer que seja.
E foi exatamente por isso que a linguagem neutra não prosperou — não porque havia uma conspiração odiosa contra ela, mas porque não havia demanda real. Se as pessoas realmente quisessem falar “todes”, falariam — e ponto final. A língua não precisa de autorização. Ela simplesmente acontece. O problema da pauta woke foi justamente imaginar que poderia impor uma mudança sem que a própria sociedade a desejasse. Acharam que poderiam empurrar goela abaixo, através de discursos emocionados, humilhação pública, cancelamento, dossiê e mil pequenos mecanismos coercitivos de pressão social. E se tem uma coisa que o brasileiro detesta é alguém dizendo como ele deve falar, se comportar ou pensar. A cultura woke errou na primeira lei de convivência brasileira: “não encha o saco”.
Mas talvez o ponto mais amargo dessa história seja outro: as inúmeras pessoas que, nos últimos anos, foram massacradas por não se curvarem a essa liturgia woke. Gente que perdeu emprego, reputação, clientes, amigos e tranquilidade porque ousou dizer que “todes” não fazia sentido, ou que achava ridícula a ideia de que discordar de uma construção artificial seria “violência simbólica”. Quantos não foram publicamente mutilados pela patrulha digital por defender que a língua não é um Lego que se rearranja conforme a ideologia da moda? Quantos não ouviram sermões intermináveis sobre como a gramática tradicional seria um instrumento de opressão cisheteronormativo ultrafascista eurocentrado e imperialista?
Sim, parece ridículo agora — e é ridículo mesmo — mas foi real. Foi assustadoramente real. E o mais engraçado é observar a mesma militância que ontem pedrava qualquer discordante agora tentando justificar a decisão de Lula ou fingindo que nada aconteceu. Eles sempre dão um jeito de passar pano quando o movimento estratégico exige, mesmo que isso implique contradizer tudo o que berravam até então.
Mas, ao contrário do que alguns podem achar, não há nada de contraditório na posição libertária nesse tema. Pelo contrário: a posição libertária é a única coerente. Do ponto de vista libertário, cada um fala do jeito que quiser. Quer usar “todes”? Use. Quer ser chamado de “elu”? Ótimo. Quer inventar um pronome só seu? Maravilha. A língua pertence ao falante, não ao estado, não à academia e não ao coletivo. A regra básica é simples: você fala como quiser, eu falo como quiser, e ninguém tem o direito de obrigar ninguém a nada. Se eu quiser te chamar de Xaolin Matador de Porco, por exemplo, esse é meu direito. E é seu direito absoluto se ofender, se afastar, bloquear, devolver o insulto ou simplesmente ignorar. Porque em uma sociedade verdadeiramente livre — e não nesse teatro de opressões imaginárias — ofensa não é crime. O crime é a agressão física, a ameaça real, a coerção, a violência concreta. Palavras, por mais duras que sejam, não são capazes de te agredir.
Ou seja: o problema nunca foi alguém desejar um pronome neutro; o problema sempre foi o impulso autoritário de obrigar os outros a aceitarem aquilo como norma. E é aqui que entra a grande contradição dessas pessoas que acham que podem mandar na vida dos outros: a esquerda, que tanto ensaiou discursos inflamados sobre liberdade de expressão dentro da gramática identitária, agora se cala resignada enquanto o próprio Lula decreta que, pelo menos no âmbito estatal, a brincadeira acabou.
E não há como ignorar o subtexto mais amplo dessa história: a própria esquerda percebeu que a cultura woke se tornou um estorvo. Um fardo. Uma âncora eleitoral. A pauta identitária, que antes parecia irresistivelmente moderna, virou sinônimo de exagero, de artificialidade, de vitimismo forçado. E quando até o PT percebe isso, pode acreditar: é porque a fase realmente passou. O ciclo terminou. A bolha estourou.
A decisão de Lula, nesse sentido, é quase um epitáfio: “Aqui jaz o surto coletivo do ’todes’”. É a certidão de óbito oficial da cultura woke em sua face linguística. E, curiosamente, isso não significa diminuir as pessoas trans, não significa desrespeitar minorias, não significa negar problemas reais — significa, simplesmente, reconhecer que a língua não pode ser sequestrada por um projeto político, especialmente quando esse projeto se ancora mais nos delírios de uma pequena bolha, do que em qualquer necessidade social concreta.
O fim da festa woke não chegará com um grande confronto ideológico, mas com gestos assim: silenciosos, pequenos, quase desinteressados. O próprio Lula, ao sancionar a proibição, não fez discursos inflamados nem justificativas poéticas. Apenas assinou. E pronto. Como se dissesse: “Chega, cansei desse assunto”. E, de fato, o assunto cansou. O povo cansou. O país cansou. E quando até a militância suspira e decide não peitar seu líder, é porque percebeu que a luta estava perdida antes mesmo de começar.
No fim das contas, talvez seja esse o grande recado libertário aqui: a língua pertence às pessoas — e as pessoas já decidiram. O estado agora só está correndo atrás do prejuízo, tentando organizar burocraticamente aquilo que a realidade já resolveu espontaneamente. E a realidade, como sempre, tem uma forma peculiar de lembrar a todos que nenhuma ideologia consegue vencer a liberdade natural dos indivíduos de falarem, pensarem, criarem e se expressarem como bem entenderem. Mesmo quando tentam forçar o contrário com toda a força moralista de uma cultura que, felizmente, já deu o que tinha que dar.
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