Um governo minarquista à moda Neozelandesa, Estoniana ou Argentina é possível no Brasil?
Aristóteles fez questão de esclarecer que o erro em que incorre a democracia é considerar que, como todos são iguais em liberdade, podem e devem ser iguais também em todo o resto.
Organizações são grupos específicos de indivíduos que perseguem um conjunto de objetivos comuns. As instituições são normas formais ou informais, crenças, leis e outros mecanismos que facilitam a coordenação das ações individuais no interior das organizações e entre organizações. De todas as organizações, o Estado é a maior e mais complexa, autodeclarando-se o detentor formal do monopólio do uso da violência contra seus próprios membros e outras organizações. Não obstante, organizações e instituições não podem ser confundidas com estabelecimentos, pois são meras edificações onde organizações, indivíduos e suas instituições agem.
No caso brasileiro, desde o golpe militar de 1889, há uma república federativa à moda norte-americana, mas com os temperos e idiossincrasias que só nós temos: federalismo com 03 entes formalmente autônomos. Essa jornada começou com 642 municípios em 1872. Durante o período do fascismo Varguista existiam 1.363 municípios, aumentando para 3.959 em 1970. Durante o período da “Nova República” existiam um pouco mais de 4 mil municípios. Hoje temos a peculiar federação de 5.597 entes federados autônomos, sendo: 5.568 Municípios, 26 Estados, 1 DF e 1 União. É a política de sempre aumentar a expropriação da riqueza produzida pela sociedade, dividir o território com as elites políticas locais e redistribuir a pilhagem entre os sócios maiores e menores.
Soma-se a este pandemônio o ritmo bianual de eleições de nossa república de democracia representativa. Ritmo este que gera um cenário de eleições permanentes. Dadas as características de eficiência da união em relação aos demais entes federados, aquela possui maior capacidade de arrecadação e de exercer a violência em suas múltiplas facetas.
Tentar compreender com relativa clareza o que ocorre concretamente com nossa sociedade brasileira exige esforço permanente de atenção, estudo, análise e avaliação. Quão mais diversificadas, amplas, ricas em vocabulários e experiências forem as fontes que usamos, mais próximos da realidade nossos modelos mentais estarão. Razão tinha Lewis quando escreveu: “Cada época tem um ponto de vista próprio. Cada uma é especialmente boa em enxergar certas verdades e suscetível a cometer certos erros. Todos nós, portanto, precisamos de livros que corrijam os erros característicos de nosso próprio tempo. E isso significa livros antigos”.
Este dezembro de 2023 nos brinda com novo número da publicação universitária ‘Dados’, revista que publica artigos importantes para a compreensão do contexto político da organização estatal brasileira. A Dados é editada pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Os professores Diogo Ferrari (Universidade da Califórnia), Rogério Schlegel (Unifesp) e Marta Arretche (USP) apresentam-nos, nesta edição, o artigo intitulado “O que pensa o Brasileiro sobre a Federação? Centralização e Crise de Confiança pós-2013”. Trata-se de avaliação sobre as tendências centralizadoras e descentralizadoras dos eleitores brasileiros no contexto das crises políticas e econômicas vivenciadas no final dos anos 2010 no Brasil.
Todo processo avaliativo é mediado por dados objetivos e pelas preferências, explicitadas ou não, dos avaliadores. Esta é realizada a partir de duas pesquisas inéditas e das preferências dos autores que podem ser identificadas por termos como “presidenta” (Dilma) e “governo de extrema direita” (Jair Bolsonaro e Paulo Guedes).
Dado o período analisado, os autores apresentam quatro conclusões: 1) os eleitores brasileiros percebem que as decisões do governo federal são as que mais afetam suas vidas; 2) o suporte político à autoridade da União cai expressivamente; 3) queda generalizada da confiança nos três níveis de governo; 4) identificou-se estatisticamente que “a confiança no governo central passou a prever atitudes favoráveis a mais centralismo”.
Os achados apresentados, se considerarmos a certa tolerância que nós, latinos, temos ao autoritarismo, não são de todo surpreendentes. O que mais chamou atenção foram os resultados obtidos em uma classe de respondentes que os autores denominaram “status quo”, ou seja, pessoas que, novamente, segundo os pesquisadores, tendem a preferir as coisas como estão. Vejamos:
Foi perguntado a um grupo de eleitores, em 2013, qual ente federado brasileiro deveria ter MAIS poder. A distribuição das respostas foi a seguinte: governador (13,7%); prefeito (20,5%); presidente (19,6%); todos (3,4%) e ninguém (36,8%). Mais à frente, em 2018 as respostas foram: governador (11,3%); prefeito (15,8%); presidente (13,4%); todos (4,2%); ninguém (48,9%).
A mesma pesquisa perguntou qual ente deveria ter MENOS poder. Em 2013, a distribuição das respostas foi: governador (14%); prefeito (17,4%); presidente (10,5%); todos (3,2%); ninguém (46,9%). Já em 2018, a distribuição ficou assim: governador (10,9%); prefeito (17,2%); presidente (22,6%); todos (7%); ninguém (36,5%).
A desagregação geopolítica das respostas mostra que entre 2013 e 2018 a região sul apresentou aumento no apoio ao incremento do poder da união, enquanto a região nordeste foi a que apresentou maior apoio ao aumento de poder aos governadores de estado. No entanto, a quantidade de pessoas que afirmaram não desejarem incremento de poder a nenhum ente federado aumentou significativamente nas regiões sul, centro-oeste e nordeste. Em termos estaduais foi em São Paulo e no Ceará onde se observou com mais intensidade este fenômeno.
Os pesquisadores denominaram como “status quo” a classe de respondentes que preferem reduzir o poder centralizado, mas que não afirmam desejar maior poder para os demais entes federados, como ocorre no eleitorado norte-americano. Pensamos que a interpretação do fenômeno pode ser outra.
Observa-se movimentos muito interessantes nas preferências dos entrevistados: conforme o tempo avança, as pessoas preferem que a federação como um todo tenha menos poder sobre a sociedade. As pessoas percebem que a quantidade de liberdade individual possível de ser exercida é inversamente proporcional ao poder do estado federado.
Se a interpretação apresentada acima é mais adequada para apreender a realidade, estamos diante de um fenômeno onde o cansaço e a saturação com as sucessivas crises políticas, econômicas e morais indica às pessoas que a solução não está em fortalecer o jogador A, B ou C dentro do jogo estatal de expropriar a riqueza produzida pelas pessoas, mas de se afastar dos jogadores e, quiçá, do próprio jogo.
Corroborando esta perspectiva, no último parágrafo do artigo os autores afirmam: “A queda na confiança no governo federal foi acompanhada de uma expansão da parcela de eleitores que não conferiria mais poder a nenhum nível de governo: cresceram de 36,8% para 48,9%. A maior parte do eleitorado brasileiro reconhece que a federação brasileira é centralizada e não parece disposta a alterar substancialmente este desenho, apesar dos choques vividos pela política nacional entre 2013 e 2018”.
Se as preferências não se alteraram qualitativamente de 2018 até hoje no sentido pró-estado, há espaço para as pessoas escolherem um novo jogador que, dentro do jogo, altere de tal forma suas regras e métodos, à moda Nova Zelândia (1984) e Estônia pós URSS, que de uma dinâmica totalitária, iniciemos outra no sentido minarquista como um passo intermediário até chegarmos ao Ancapistão.
Um Milei ou David Lange ou Mart Laar brasileiro é possível?
Independentemente da resposta à questão acima, é fundamental ter em mente a seguinte questão: “Os governantes têm programas de ação, mas estes não podem realizar-se sem o concurso dos governados. Ora, estes raramente são unânimes na aprovação concedida àqueles a quem devem obedecer... A ideia de que possa haver política, quer dizer, programa de ação governante, sem conflito é uma falsa ideia”.
O que Pensa o Brasileiro sobre a Federação? Centralização e Crise de Confiança pós-2013
https://www.scielo.br/j/dados/a/Chs7Z7ccLdgSPzNcYjrqbBg/?lang=pt
Evolução da divisão territorial do Brasil : 1872-2010 / IBGE, Diretoria de Geociências
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv55077.pdf
Introdução à Aristóteles. Giovane Reale. 2012.
https://www.amazon.com.br/INTRODUCAO-ARISTOTELES-Giovanni-Reale/dp/8578660730
Violence and Social Orders: A Conceptual Framework for Interpreting Recorded Human History. Douglass North.
https://www.amazon.com.br/Violence-Social-Orders-Conceptual-Interpreting/dp/1107646995/ref=sr_1_6?crid=136ILWNMG7YNA&keywords=douglass+north&qid=1702664620&s=books&sprefix=douglass+%2Cstripbooks%2C205&sr=1-6&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.db68964d-7c0e-4bb2-a95c-e5cb9e32eb12
Democracia e totalitarismo. Raymond Aron. 1966.
https://ccbibliotecas.azores.gov.pt/cgi-bin/koha/opac-detail.pl?biblionumber=58149&query_desc=an%3A177114
Sobre Histórias. C.W.Lewis.
https://www.amazon.com.br/Sobre-Hist%C3%B3rias-Cl%C3%A1ssicos-C-S-Lewis-ebook/dp/B07G9RD3J7/ref=sr_1_19?qid=1702665277&refinements=p_27%3AC.S.+Lewis&s=books&sr=1-19&text=C.S.+Lewis