E se toda a cidade estivesse nas mãos de um único sistema — e alguém decidisse hackeá-lo? Watch Dogs vai muito além de um jogo: é um alerta sobre vigilância, poder centralizado e o preço da liberdade num mundo cada vez mais digital e distópico.
Você já parou para pensar no que poderia acontecer se todos os semáforos, câmeras de segurança, caixas eletrônicos e até mesmo os smartphones de uma cidade inteira estivessem conectados a um único sistema central? E se esse sistema fosse tão vulnerável que uma única pessoa pudesse invadi-lo e assumir o controle de tudo? Este é exatamente o cenário tenebroso que temos em Watch Dogs — um jogo que levanta discussões cada vez mais urgentes sobre vigilância, privacidade e o imenso poder que a tecnologia tem nas mãos certas ou erradas.
Na história, somos apresentados a Aiden Pearce, um hacker que se transforma em vigilante após uma tragédia pessoal: a morte de sua sobrinha, Lena, em um atentado que tinha ele como alvo. Aiden possui uma habilidade rara — ele consegue hackear o ctOS (Central Operating System), o sistema que comanda basicamente toda a infraestrutura da cidade de Chicago. Com seu smartphone e um aplicativo chamado “Profiler”, ele consegue manipular semáforos, explodir canos de vapor, roubar dados bancários e até espionar chamadas telefônicas e conversas privadas.
Mas o jogo não entrega Ainden Pearce como um herói clássico. Ele está mais para anti-herói — ou mesmo para criminoso — do que qualquer coisa. Ele quebra leis, invade propriedades, usa seus talentos para se vingar. E é exatamente essa zona cinzenta que torna Watch Dogs tão interessante de ser analisado sob a perspectiva libertária.
(Sugestão de Pausa)
Como vocês sabem, os verdadeiros libertários defendem o Princípio da Não Agressão (o PNA), que afirma ser moralmente errado iniciar o uso da força contra qualquer pessoa pacífcia ou sua propriedade. Tecnicamente, isso coloca o personagem Aiden como um violador desse princípio. Ele invade sistemas, acessa dados pessoais e frequentemente comete homicídios. Mas o jogo desafia essa visão simplista. E se o próprio sistema de justiça estiver tão corrompido que se torna cúmplice dos crimes que deveria combater?
Conforme a narrativa avança, percebemos que a morte de Lena está ligada a uma conspiração envolvendo políticos, empresários e criminosos — todos protegidos pelo sistema. O prefeito de Chicago assassinou uma mulher e usa o ctOS para esconder o crime. Lucky Quinn, chefe de uma máfia, é aliado de autoridades locais. E a própria Blume Corporation, empresa responsável pelo ctOS, está metida em corrupção até o pescoço.
Nesse cenário, Aiden não parece mais um criminoso qualquer. Ele começa a se parecer com alguém que está tentando restaurar a justiça num ambiente onde ela foi completamente desfigurada. Claro que seus métodos são moralmente questionáveis — e aqui entramos numa discussão delicada: quando a autodefesa é legítima? Quando ela passa a ser agressão?
Outro ponto que salta aos olhos em Watch Dogs é o fato de a segurança pública ter sido privatizada. A Blume Corporation não só criou, como também opera o ctOS — um sistema que controla desde câmeras até serviços essenciais. Em tese, isso deveria ser mais eficiente do que o velho modelo estatal — afinal, empresas privadas têm incentivos para inovar, melhorar e baratear serviços. Mas o que acontece quando uma única empresa tem controle absoluto sobre esse sistema? Ela se torna, na prática, indistinguível do Estado, pois não é ameaçada pela concorrência. E talvez até pior: não foi eleita, não presta contas a ninguém, e usa o pretexto da “segurança” para vigiar, manipular e influenciar tudo — até eleições.
E aí o jogo toca num ponto perigosamente atual. Big Techs como Google, Meta (antiga Facebook) e Amazon coletam quantidades absurdas de dados pessoais. E frequentemente fazem isso em colaboração com agências estatais. O que começou como “serviços voluntários” virou uma teia de vigilância que deixaria a polícia do antigo regime alemão oriental, a Stasi, no chinelo.
(Sugestão de Pausa)
Voltando a Pearce: ele é criminoso? Legalmente, sim. Mas moralmente? A resposta é complexa. Ele usa meios ilegais para tentar fazer justiça onde o sistema falhou. Ele está, de certo modo, fornecendo uma forma de “restituição privada”, algo que muitos libertários defendem em situações onde a justiça estatal é ineficiente ou inexistente.
Claro que há um problema de proporcionalidade. Pearce mata pessoas que, às vezes, são apenas peças menores de uma engrenagem muito maior. Mas e se essa engrenagem for parte de uma organização criminosa infiltrada no Estado? Aqui entramos em um dilema que todo libertário já enfrentou: o que fazer quando o Estado aumenta seu poder e se torna onipotente? Nesse cenário, os fins justificam os meios?
A tecnologia em Watch Dogs também representa esse dilema: ela pode ser libertadora ou opressora, dependendo de quem a controla. O ctOS permite vigilância em massa, manipulação da infraestrutura e controle de informações. É, basicamente, um Leviatã digital que cria um cenário de controle e vigilância total. A pergunta é: quem tem o poder de ligar e desligar esse sistema?
Se for o Estado, temos uma tirania com esteroides digitais. Se for uma corporação aliada ao Estado, temos uma forma de fascismo corporativo. Se for um indivíduo como Pearce, temos o vigilantismo digital — e isso pode ser libertador ou aterrorizante, dependendo das motivações e dos limites éticos desse vigilante.
O jogo também apresenta a DedSec, um grupo descentralizado de hackers que querem democratizar o acesso à informação e lutar contra o poder concentrado. Eles são uma espécie de contraponto libertário à Blume e ao Estado. Ao invés de confiar em uma autoridade central, eles apostam em uma rede descentralizada de indivíduos com interesses comuns. É uma ideia genuinamente libertária. Claro, esse tipo de grupo também não está livre de problemas — podem ser infiltrados, radicalizados, perder o foco. Mas a base filosófica é forte: descentralização como antídoto ao abuso de poder.
(Sugestão de Pausa)
Watch Dogs foi lançado em 2014, mas sua mensagem só se tornou mais urgente com o tempo. Hoje, vivemos em cidades que estão se transformando em smart cities, cheias de sensores, câmeras e sistemas automatizados. A coleta de dados por empresas privadas é feita com “consentimento” — muitas vezes, sem que a pessoa realmente entenda o que está aceitando —, e esses dados são usados por governos com finalidades que vão muito além do prometido. Como o Estado detém o monopólio do poder, a elite estatal, mais cedo ou mais tarde, acabará abusando desse poder para pressionar as empresas de vigilância a entregarem dados sigilosos — como já acontece com as redes sociais.
A privatização de serviços públicos, sozinha, não garante liberdade. Se uma empresa privada tem poder suficiente — principalmente se aliada ao Estado — ela pode ser tão tirânica quanto qualquer governo autoritário. E nem sempre o perigo vem de cima. Há também iniciativas locais de monitoramento feitas por vizinhos, com boas intenções. Mas até essas redes descentralizadas podem acabar conectadas ao sistema maior de vigilância, como está acontecendo em São Paulo.
O Smart Sampa, por exemplo, começou com a promessa de ajudar a encontrar criminosos e pessoas desaparecidas. Hoje já está integrado com a CET para monitoramento de trânsito, com mais de 25 mil câmeras inteligentes operando na cidade. Durante o Carnaval de 2025, 91% dos foliões aprovaram o uso da tecnologia. O sistema contribuiu para 2.074 prisões em flagrante, 868 foragidos capturados e 51 desaparecidos localizados.
Impressiona, claro. Mas aí vem a pergunta: as pessoas entendem o que estão aprovando? Sabem o que significa ter um sistema de reconhecimento facial ativo, operando em tempo real, cruzando dados com bases estaduais e federais?
É justamente isso que Watch Dogs alerta. Que esse tipo de sistema — que parece eficiente e útil — pode virar, com uma simples mudança política, uma arma de repressão. E diferente da China, onde tudo isso é abertamente autoritário, no Ocidente o autoritarismo vem camuflado de funcionalidade e ótimas intenções.
(Sugestão de Pausa)
Em um mundo onde a tecnologia é onipresente, conhecimento técnico virou forma de poder político. Quem domina o código, domina as regras. Por isso, é essencial que o conhecimento seja popularizado, que a vigilância seja vigiada, e que o poder não fique concentrado em poucas mãos.
No fim, a história do jogo Watch Dogs nos obriga a encarar uma pergunta incômoda: quando é justificável quebrar a lei para combater a corrupção? O personagem Pearce não é um mártir, tampouco altruísta. Mas representa um tipo que está se tornando comum: o indivíduo com conhecimento técnico suficiente para resistir a um sistema opressor — mesmo que isso signifique se tornar um fora-da-lei.
Libertários reconhecem o direito à autodefesa e à resistência contra tirania. Defendemos a propriedade privada, a não agressão e a proporcionalidade. A linha entre um ato legítimo de resistência e uma violação moral é fina — e fácil de cruzar.
(Sugestão de Pausa)
O jogo é ficção. Mas a tecnologia dele é real. Na China, o sistema de Crédito Social já está em funcionamento, usando inteligência artificial, reconhecimento facial e análise de dados para monitorar e controlar o comportamento de mais de um bilhão de pessoas. Quem tem “pontuação baixa” pode perder o direito de viajar, estudar, ou até mesmo de usar transporte público. É o ctOS na vida real — sem nenhum Aiden Pearce para tentar hackear.
E, antes que a gente pense “isso é coisa de ditadura”, vale lembrar: o Brasil já conta com o Smart Sampa, que utiliza reconhecimento facial em tempo real — e há um monte de políticos e juízes autoritários prontos para usar isso a seu favor. A maioria das pessoas, que pouco se importa com a própria liberdade, apoia sem sequer pensar duas vezes.
O jogo não oferece uma resposta simples. Ele apenas alerta que toda forma de poder — centralizada ou não — pode ser corrompida. O equilíbrio entre liberdade individual e responsabilidade coletiva é delicado, especialmente em um mundo conectado por sistemas digitais invisíveis. No fim das contas, Watch Dogs nos lembra de algo essencial: a liberdade não é um presente que nos chega fácil. Vai além de um mero direito no papel: é uma responsabilidade que precisa ser defendida. E no fim das contas, não importa quem detém o poder — o problema é quando ele se concentra, sem transparência e sem limites, nas mãos do governo.
https://estudio.folha.uol.com.br/prefeitura-de-saopaulo/2025/03/smart-sampa-tecnologia-e-inteligencia-artificial-reforcam-seguranca-em-sao-paulo.shtml
https://www.controlid.com.br/blog/ia/sistema-de-vigilancia-china/