Como as Leis Moldam Nossas Cidades: Quando a Burocracia Atinge a Arquitetura

Às vezes, as maiores obras arquitetônicas do mundo nascem não da genialidade, mas da preguiça — ou burrice — dos burocratas. E, no fim das contas, é a criatividade dos cidadãos que transforma regras mal pensadas em verdadeiros ícones urbanos.

Algumas das características arquitetônicas mais marcantes do mundo nasceram não da genialidade de grandes arquitetos, mas da preguiça intelectual de burocratas que acreditavam ter encontrado soluções “infalíveis” para os problemas urbanos. O que deveria ser temporário virou permanente, o que deveria resolver problemas criou outros, e o que deveria ser funcional virou somente estético. Mais uma vez, vemos como o Estado — mesmo quando supostamente bem-intencionado — é incapaz de prever as consequências das suas próprias regras. E, como sempre, são os cidadãos comuns que precisam se adaptar às trapalhadas dos seus governantes, criando, no processo, algumas das paisagens urbanas mais interessantes do planeta.

As famosas casas estreitas de Amsterdã não são resultados de um planejamento urbano genial ou de uma escola arquitetônica visionária. São, na verdade, o produto de uma das políticas fiscais mais burras da história: cobrar impostos pela largura da fachada dos imóveis. No século XVII, durante o boom econômico holandês — quando os comerciantes locais estavam nadando em dinheiro vindo do comércio mundial — o governo da cidade teve uma ideia “brilhante”: por que não taxar os prédios pela largura de suas fachadas? Afinal, quanto maior a fachada, mais rico deveria ser o proprietário, certo?

Errado. O que aconteceu foi exatamente o que qualquer pessoa com dois neurônios poderia prever: os holandeses simplesmente construíram casas estreitíssimas e altíssimas. Se o governo queria cobrar pela largura, eles dariam a menor largura possível — e compensariam na altura e na profundidade. O resultado? Uma das paisagens urbanas mais fotografadas do mundo. Turistas do mundo inteiro vão à Amsterdã admirar essas casas “charmosas” sem saber que estão, na verdade, contemplando um protesto arquitetônico contra a tributação abusiva. É quase poético: o que era para encher os cofres públicos virou cartão postal.

Mas se você achou que taxar fachadas já era o cúmulo da criatividade fiscal, espere até conhecer a estratégia egípcia para “ajudar” os pobres. Se você já se perguntou por que Cairo parece uma cidade eternamente inacabada, com prédios cinzas cheios de vergalhões espetando para o céu, a resposta está numa política pública que é um verdadeiro case de como as boas intenções pavimentam o caminho para o inferno urbano. Nos anos 1950, o governo egípcio teve uma ideia “solidária": para auxiliar a população mais pobre a terminar suas construções, só cobraria impostos prediais quando os imóveis estivessem completamente prontos. A lógica parecia impecável — com o dinheiro economizado nos impostos, as famílias poderiam investir na finalização das obras.

O que aconteceu na prática foi uma masterclass em jeitinho oriental. Os cairenses simplesmente deixaram suas casas permanentemente “quase prontas”. Um quartinho inacabado aqui, uma laje descoberta ali, alguns vergalhões estrategicamente expostos — e pronto, imposto zero para sempre. Décadas depois, Cairo virou um mar de prédios que parecem ter sido abandonados no meio da construção, mas que, na verdade estão habitados e funcionais. É a estética da gambiarra fiscal transformada em identidade urbana. O governo queria auxiliar os pobres e acabou criando uma das paisagens urbanas mais feias do mundo — mas também uma das mais criativas em termos de resistência tributária.

(pausa)

Do outro lado do Atlântico, os canadenses também tiveram que lidar com a genialidade regulatória dos seus governantes, mas acabaram criando algo bem mais bonito que os egípcios. As icônicas escadas externas de Montreal — que dão um charme único ao Plateau Mont-Royal e outros bairros históricos — são outro exemplo de como a teimosia burocrática pode criar beleza acidental. A história dessas escadas é um emaranhado de regulamentações que se acumularam ao longo dos anos, cada uma tentando resolver um “problema” específico. Primeiro, a prefeitura determinou uma distância mínima entre os prédios e a calçada, limitando o espaço para construção. Os moradores responderam colocando as escadas do lado de fora para aproveitar melhor o espaço interno.

Depois, em 1845, uma lei eleitoral reservava o voto somente para homens proprietários e locatários que tivessem “entrada própria” — o que incentivou ainda mais a construção de escadas independentes. E em 1869, uma legislação obrigou os moradores a plantar árvores na frente das casas, o que explicaria por que as escadas têm vãos abertos — para dar espaço às plantas. O resultado dessa colcha de retalhos regulatória é uma das características arquitetônicas mais charmosas da América do Norte. Quem caminha por Montreal hoje admira essas escadas como se fossem um traço cultural distintivo dos quebequenses, sem saber que são, na verdade, o produto de décadas de leis mal pensadas e da necessidade dos moradores de se adaptar a elas.

Mas se os canadenses pelo menos conseguiram algo bonito da confusão regulatória, os ingleses foram menos sortudos — e literalmente pagaram com a própria saúde. A Inglaterra do século XVIII nos deu uma das lições mais claras sobre como a arrogância fiscal pode literalmente escurecer a vida das pessoas. Preocupado em não invadir a privacidade dos cidadãos para calcular impostos (que ironia!), o governo britânico teve a ideia “genial” de cobrar uma taxa baseada no número de janelas das residências. A lógica era simples: mais janelas significariam casas maiores e, portanto, famílias mais ricas. Era um proxy perfeito para a renda sem precisar bisbilhotar a vida de ninguém. O que poderia dar errado? Absolutamente tudo. Os britânicos simplesmente taparam suas janelas. Famílias inteiras passaram a viver em ambientes escuros e mal ventilados para escapar do “imposto sobre luz e ar” — como a taxa ficou sarcasticamente conhecida. Casas que antes eram iluminadas e arejadas viraram calabouços voluntários. O imposto foi tão impopular que acabou sendo revogado no século seguinte, mas não antes de deixar sua marca permanente na arquitetura britânica. Ainda hoje é possível encontrar casas no Reino Unido com janelas emparedadas — cicatrizes de uma época em que o governo literal e figurativamente bloqueou o sol da vida das pessoas.

Saltando alguns séculos e cruzando o oceano, chegamos ao Brasil moderno, onde nossa capacidade de burocratizar até o óbvio continua impressionante. Porto Alegre é um exemplo perfeito de como um Plano Diretor pode transformar uma cidade inteira num carimbo urbano, onde todos os prédios parecem ter saído da mesma fábrica de mediocridade arquitetônica. O caso mais gritante são as sacadas da capital gaúcha. Ande por qualquer bairro novo da cidade e você verá que todas — absolutamente todas — têm exatamente 2,5 metros de profundidade. Não 2,4, não 2,6 — exatos 2,5 metros. É como se houvesse uma única régua na cidade inteira para medir sacadas.

A explicação é simples e deprimente: o Plano Diretor estabelece que sacadas com mais de 2,5 metros são consideradas “área adensável” — ou seja, contam no cálculo de aproveitamento do terreno. Resultado: todos os arquitetos fazem sacadas de exatos 2,5 metros para não “desperdiçar” potencial construtivo. Isso também explica por que raramente você vê sacadas nos quartos dos apartamentos porto-alegrenses. Se fosse no quarto, seria computada como área construída do edifício, reduzindo o número total de apartamentos que cabem no terreno. Então, sacada só na sala mesmo — e sempre com os mesmos 2,5 metros de profundidade.

O resultado é uma cidade onde a criatividade arquitetônica pereceu afogada em normas técnicas. Porto Alegre virou um mar de prédios idênticos, com sacadas padronizadas, onde qualquer tentativa de inovação esbarra numa pilha de regulamentações municipais. É a estética da burocracia made in Brazil. Mas se você pensava que o Brasil já tinha atingido o auge da criatividade tributária, prepare-se para conhecer os italianos — que conseguiram superar até nossa imaginação fiscal. Desde 1993, os comerciantes italianos pagam uma taxa sobre as sombras que seus letreiros fazem no chão.

A história do comerciante Bruno Allegranzi, dono de uma loja familiar na região do Prosecco há mais de 40 anos, é exemplar. Em dezembro passado, ele recebeu uma carta cobrando essa taxa pela primeira vez e achou que era pegadinha. “Nem sabia do que se tratava, porque já tinha pago o imposto de publicidade”, conta ele. Quando foi questionar nos escritórios municipais, ouviu a explicação mais surreal da história da tributação: “a projeção dos seus letreiros ocupa solo público fazendo sombra”.

Vamos parar um segundo para absorver essa genialidade burocrática. O governo italiano criou um imposto sobre algo que tecnicamente não existe — a sombra. E não importa se há sol, se está nublado, se chove ou se é noite. O que conta é a “hipotética sombra” que o letreiro “poderia fazer” se houvesse sol. É taxar o potencial de algo que pode nem acontecer. Allegranzi se sentiu “alucinado” — e com razão. Durante quatro décadas de atividade comercial, nunca ouvira falar dessa taxa, apesar de ela existir desde 1993. O truque? Antes a cobrança vinha embutida no “imposto por ocupação do solo público” e agora aparece separada, chamando atenção dos comerciantes pela primeira vez.

A Confederação Geral de Empresas italiana já classificou o imposto como “surrealista” e está lutando pela sua suspensão imediata. Mas isso é a Itália — país que conseguiu transformar até a física em fonte de arrecadação. Se Isaac Newton soubesse que sua descoberta sobre luz e sombra viraria pretexto para tributação, teria provavelmente desistido da ciência e virado agricultor. Esses exemplos evidenciam algo que deveria ser óbvio, mas que os governos insistem em ignorar: as pessoas sempre encontram maneiras de contornar regulamentações inconvenientes. E quando isso acontece, o resultado raramente é o que os burocratas imaginaram.


Às vezes, essa adaptação cria beleza acidental — como as casas de Amsterdã ou as escadas de Montreal. Outras vezes, gera aberrações estéticas — como os prédios eternamente inacabados do Cairo ou as sacadas padronizadas de Porto Alegre. Mas em todos os casos, fica claro que a capacidade do Estado de prever (e controlar) o comportamento humano é praticamente nula. A verdade é que cidades crescem e se desenvolvem organicamente, mediante milhares de decisões individuais tomadas por pessoas que conhecem suas necessidades melhor do que qualquer planejador urbano. Quando o governo tenta dirigir esse processo por meio de leis e regulamentações, o resultado é quase sempre diferente — e geralmente pior — do que o pretendido.

Mas há uma ironia reconfortante nisso tudo: mesmo as políticas públicas mais mal concebidas acabam sendo domadas pela criatividade humana. Os holandeses transformaram um imposto abusivo em charme arquitetônico. Os cairenses transformaram uma lei de “ajuda” em arte da gambiarra. Os ingleses, depois de muito sofrimento, conseguiram derrubar um imposto absurdo. A lição é clara: por mais que os governos tentem moldar nossas cidades e nossas vidas, no final das contas são sempre as pessoas — com sua teimosia, criatividade e capacidade de adaptação — que determinam como realmente vivemos e construímos nossos espaços. E isso, felizmente, nenhuma lei consegue regulamentar.

Referências:

https://zap.aeiou.pt/italianos-revolta-descobrir-pagam-imposto-sombra-desde-1993-148095
https://caosplanejado.com/5-exemplos-de-legislacoes-que-influenciaram-a-arquitetura-pela-historia/