Nunca foi segredo de ninguém, o tema do Aborto divide a comunidade Ancap. Seria possível chegarmos em um ponto de equilíbrio com os nossos colegas conservadores?
Por um lado, o libertarianismo diz que ninguém deve ser obrigado a nada; por outro lado, ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa. Ambas afirmações são claras e corretas dentro da ética libertária. Aliás, não só nela, mas também na maioria das leis rabiscadas em papéis e também para a maioria das pessoas que nunca nem ouviram falar de ética libertária.
Essas duas afirmações aparentemente são coisas nas quais parece que estamos todos de acordo. No entanto, surge um problema quando tentamos conciliar isso com o polêmico tema do aborto. Não resta dúvida, essa questão é o calo no sapato de todo libertário.
Vamos para o primeiro ponto da discussão, o qual foi bem explicado no vídeo: "Aborto fere o PNA?" no nosso canal ancapsu classic, o link está na descrição. Segundo a ética libertária, ninguém tem a obrigação de manter a vida de outra pessoa. Não importa o estágio de desenvolvimento do indivíduo, dentro ou fora do útero. Dessa forma, uma mulher em qualquer período da gravidez não teria obrigação de seguir com a gestação de seu bebê. E, desde que a mulher não esteja invadindo a propriedade de ninguém, ela pode fazer o que bem entender, não é mesmo?
Aliás, é justamente um terceiro que está invadindo sua propriedade, não? Seria natural, em caso indesejado, pedir para ele, o bebê que está dentro do seu corpo, que saia da sua propriedade. Antes de mais nada, o bebê não obedeceria mesmo né, e obviamente isso culminaria na necessidade de expulsão forçada. Em outras palavras, no procedimento do aborto, no caso da gestação não desejada, seria exatamente o que você faria se um invasor entrasse em sua propriedade: expulsá-lo com o mínimo de violência necessária para isso. Porém, a própria ideia de que o bebê esteja invadindo o corpo da mulher pode ser colocada em xeque. Como ele é formado a partir de uma célula do corpo de sua mãe, o ovócito, o qual precisa ser fecundado por uma célula do corpo de seu pai, o espermatozoide, isso faz do bebê um ser gerado por seu corpo de forma natural e não um invasor. E o corpo da mãe consente com essa relação, mesmo que a mente dela não aprove. Se o corpo da mãe deixa isso acontecer isso significa que o corpo da mãe não está se defendendo e, portanto, não o reconhece como invasor. No entanto, isso se dá no nível biológico, no nível racional, mesmo que o corpo não esteja se defendendo, a mãe pode querer se defender do “corpo indesejado” usando técnicas de expulsão não naturais.
No entanto, a mãe não poderia, deliberadamente, "pedir para o beber sair de sua propriedade", pois isso implica necessariamente no consentimento e, invariavelmente, no falecimento do bebê. Na prática, seria uma verdadeira sentença de morte permitida dentro da ética libertária. Seria isso então uma falha do libertarianismo? Por outro lado, também não há nada que obrigue a mãe (ou quem quer que seja) a manter a vida de uma terceira pessoa, ainda que esta esteja dentro de seu útero em período de gestação.
Nota técnica: Repare que estamos falando apenas no plano ético. Sabemos que, na prática, no campo da moral, a grande maioria das mamães sentem tanto o desejo quanto a obrigação de prover para seu bebê. Ainda que seja uma gestação indesejada e que cause algum incômodo em sua vida.
O ponto final disso não deixa dúvida: mesmo com a proporcionalidade, ou seja, mesmo aplicando o mínimo de violência necessária, sabemos que a ação deliberada de tirar um feto do útero implica necessariamente na morte do bebê e isso, sem dúvidas, é algo terrível. O bebê é incapaz e seus progenitores são os tutores naturais que devem conduzi-lo à sua plena capacidade. Mais tarde, os pais poderiam até deixar para adoção ao se sentirem incapazes ou até simplesmente por não o desejarem mesmo. Existem muitos por aí assim, mas o cerne da questão é: e durante a gestação, o que fazer?
Pior ainda, pois não desenvolvemos a tecnologia para o desenvolvimento de fetos fora do útero. E isso poderia ser uma solução razoável para o problema, sem efetivamente ferir a propriedade de ninguém, mas ainda não chegamos lá. Enfim, como então conciliar esse paradeiro dentro da ética libertária? A resposta satisfatória não é fácil. Existem várias argumentações e a mais aceita aqui pelo canal é a do vídeo do ancapsu classic que citamos, mas há uma que me chamou a atenção do autor desse texto.
Se essa ótica estiver correta, a gestação pode ser vista como um simples contrato. Um contrato não formal, cujas partes são a mamãe e o bebê, firmado em algum momento da fecundação. Infelizmente, os homens não têm a capacidade biológica de firmar esse contrato. Somente as mulheres detêm esse dom. Do ponto de vista biológico, o único papel do homem nesse contrato é a doação de material genético. Vale lembrar que os homens podem viver uma vida inteira sem ter filhos; as mulheres também, se quiserem. Além disso, se elas quiserem, podem também decidir ter filhos, já os homens, não. Então, do ponto de vista de possibilidades, as mulheres possuem mais possibilidades que o homem. Isso é um ponto positivo para as mulheres, e não um ponto negativo, como muitos parecem fazer crer.
A duração do contrato de gestação vai até o dia do nascimento. Ninguém é obrigado fechar esse contrato, mas infelizmente, uma vez firmado, você não poderia retroceder, pois isso implicaria no rompimento do contrato; causaria prejuízo a uma das partes maior do que o estado inicial: o falecimento do feto. Essa é a natureza do contrato, em que ambas as partes têm direitos e responsabilidades. Felizmente, desenvolvemos técnicas que minimizam os riscos. Temos alguns métodos anticoncepcionais variados que funcionam muito bem e que são bastante acessíveis para praticamente todo mundo. Mas, definitivamente, não deveria haver espaço para irresponsabilidade e inconsequência quando se trata da vida humana.
Para esse contrato em questão, você não pode simplesmente cancelá-lo, pois implica no prejuízo máximo da vida – a perda dela. Infelizmente a possibilidade de gravidez é uma preocupação que temos que levar em conta, assim como uma série de outros riscos e preocupações inerentes à vida. Todos nós podemos buscar a felicidade e o prazer, afinal, somos livres em nossa propriedade, mas se estamos tratando da vida de outra pessoa é no mínimo moral ter alguma preocupação. A questão que está posta aqui é: seria a proteção do outro um dever ético nesse caso?
No caso aqui exposto, a gestação não poderia ser interrompida, pois isso implicaria dano à vida; dano superior à condição anterior da parte envolvida no contrato.
No fim das contas, torna-se difícil discutir esse assunto sem entrar em aspectos da biologia humana, os quais não são definidos por nenhum de nós por contrato. Todos já nascemos com essas condições pré-determinadas que implicam em desafios ao longo da vida e a gravidez, no caso das mulheres, é uma delas.
De qualquer forma, esse é apenas um ponto de vista, sabemos que no mundo libertário essa polêmica está longe de estar encerrada. E essa é a beleza do libertarianismo: todos são livres para terem a opinião que desejarem, ninguém é obrigado a nada. O fato é que numa sociedade libertária não existiriam leis coercitivas para proibir mulheres de encerrar suas gestações. No entanto, isso não significa que não ocorreriam retaliações. Indivíduos que são contrários a essa prática, poderiam impedir a entrada de pessoas favoráveis ao aborto em suas propriedades bem como recusar contratos com elas. A solução estatal que vemos na maioria dos casos para esse problema, que é a proibição, é que gera mais prejuízos para todos.
Aborto fere o PNA?
https://www.youtube.com/watch?v=fc7hfx0WQls